A professora e socióloga Denise Ferreira, doutora em Ciências Sociais e professora no departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), escreveu e publicou um artigo para questionar a relação entre o amor romântico e o consumo no dia dos namorados.
Denise cita grandes nomes da sociologia, como Zygmunt Bauman, mundialmente associado ao estudo do “amor líquido”.
Confira o artigo publicado pela professora:
O Dia dos Namorados no Brasil é repleto de simbologias e significados. A data é associada a Santo Antônio, conhecido como “Santo Casamenteiro” Fernando Antônio de Bulhões que nasceu em Lisboa, no dia 15 de agosto de 1195. Trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses, o culto a Santo Antônio se fortaleceu, especialmente, através das festas juninas, sobretudo, no Nordeste, onde seus “milagres” e devoção popular foram amplamente acolhidos.
A comemoração do Dia dos Namorados foi idealizada estrategicamente em 1949 pelo publicitário João Doria (pai do ex-governador de São Paulo, João Doria Júnior), contratado pela loja de departamentos Clipper (hoje extinta), com o objetivo de impulsionar as vendas em junho — um mês historicamente fraco para o comércio. Como fevereiro já é marcado pelo Carnaval e, em outros países, o dia dos namorados conhecido como Valentine’s Day é celebrado em 14 de fevereiro, Doria escolheu o dia 12 de junho como a data ideal, por anteceder o dia dedicado a Santo Antônio, também conhecido como o “santo das causas perdidas”. A escolha conferiu à data um forte apelo religioso e cultural, que, ao longo do tempo, se tornou um dos maiores impulsionadores do consumo. Atualmente, perde apenas para o Dia das Mães e o Natal em volume de vendas.
Segundo pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), a expectativa é de que, em 2025, o Dia dos Namorados movimente cerca de R$ 22 bilhões no país.
O que está por trás desse consumo crescente? Estaríamos diante de manifestações genuínas do amor romântico ou de uma “moda” socialmente induzida, na qual o gesto de dar e receber se transforma em um ato performático? Como propõe o antropólogo Marcel Mauss, o verdadeiro sentido da dádiva está no ciclo afetivo de dar, receber e retribuir e não apenas na transação comercial.
Nas semanas que antecederam a semana do dia dos namorados, presenciei uma cena que me fez refletir: ao entrar em um restaurante conhecido na cidade de Campina Grande-PB, vi um casal de meia idade trocando carinhos com ternura e naturalidade, alheios aos olhares ao seu redor. Ao voltar do balcão, fui surpreendida com os comentários de dois garçons: “deve ser uma amante”, o outro acrescentou “quem sabe, um namoro novo”. Ambas as falas revelam algo profundo: o descrédito contemporâneo em relação ao amor. Em tempos líquidos, o romantismo parece ser algo exótico ou mesmo estranho.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman nos ajuda a entender esse fenômeno. Em sua teoria do “amor líquido”, ele explica como os laços afetivos se tornaram frágeis, descartáveis e inseguros — reflexos de uma sociedade influenciada pelo consumo e pela efemeridade. Sob essa perspectiva de Bauman, o Dia dos Namorados se transforma em um produto: consumível, exibível e ageiro. Muitos sentem a necessidade de se exibir nas redes sociais gestos românticos para demonstrar, por um breve período que fazem parte na lógica do amor, mesmo que este seja superficial e efêmero.
A socióloga hebraica Eva Illouz, em O Amor nos Tempos do Capitalismo, também analisa a fragilidade emocional contemporânea. Segundo ela, a cultura capitalista criou um ideal romântico inatingível, reforçado pela literatura, pelo cinema e pela publicidade. Isso gera profundas frustrações, pois as pessoas não atendem às expectativas midiáticas do “par perfeito”, do “amor ideal”, da “felicidade constante”. Assim, vivenciamos o medo do fracasso afetivo e a ilusão da escolha infinita.
Resta-nos a pergunta: o Dia dos Namorados é uma celebração do afeto ou uma vitrine social? Queremos realmente amar, ou apenas demonstrar que temos alguém? Ou na verdade buscamos de forma incessante um amor? Como diria o cantor e compositor Accioly Neto, contrapondo-se a tudo que é ageiro, o amor verdadeiro deixa marcas difíceis de apagar: Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim/Um grande amor não se acaba assim/Feito espumas ao vento/Não é coisa de momento/Raiva ageira/Mania que dá e a feito brincadeira/O amor deixa marcas que não dá pra apagar.
Por fim, o dia dos namorados, como vivenciamos hoje se encontra entre dois extremos: a experiência genuína do amor e o apelo consumista. De um lado existe toda uma construção em torno do ideal que exalta o amor; do outro ela é intensamente capturada pela lógica do mercado que acaba transformando sentimentos, emoções em produtos e relacionamentos em vitrines. Talvez um casal trocando carinhos despretensiosos nos lembre que um amor verdadeiro resiste ao tempo, às aparências e ao consumo. Desejo que o dia dos namorados seja, acima de tudo, uma oportunidade de reconexão para reafirmamos o que é essencial.